quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Uma manta e uma broa de pão

 



Num país que se afirma civilizado, em pleno séc. XXI, somos surpreendidos amiudadas vezes por notícias que nos atiram aos olhos situações revoltantes em que se acham os nossos idosos: lares ilegais sem conforto e segurança, com idosos maltratados, humilhados e agredidos; idosos abandonados nos hospitais onde entram nas urgências, depois recebem alta médica mas não têm retaguarda familiar ou institucional que os acolha.

Em 2023, a estatística indicava que perto de 1700 pessoas eram mantidas de “forma inapropriada” nos hospitais. Muitas sem família que as queira ou possa acolher e outras abandonadas pela Segurança Social, que o mesmo é dizer pelo Estado, incapaz de garantir um lugar num lar de 3ª idade a quem apenas recebe uma mísera reforma de 300 euros, sendo o custo médio num lar superior a 1.400.

No lendário de algumas regiões, alude-se, simbolicamente, ao abandono dos velhos em montanhas isoladas. Existem mesmo locais referenciados. No Monte Córdova, em Santo Tirso, há um lugar denominado “Picoto do Pai”, onde a lenda diz que, em tempos idos, os filhos iam deixar os pais para aí terminarem os seus dias, deixando-lhes uma manta e uma broa de pão. Conta-se que um dos velhos levado num carro de bois por um filho, aconselhou-o a que lhe deixasse só metade da manta e levasse a outra metade para quando chegasse o seu torno. “E porquê?” ­ perguntou o filho. “Pois então? ­ respondeu o velho – Até aqui trouxe eu meu pai, tu trouxeste-me a mim, e teu filho há de trazer-te a ti”. Ouvindo tal, o moço apressou-se a repô-lo no carro e voltou com ele para casa, terminando assim por aqueles lados esse terrível costume.

Nesta lenda, historicamente improvável, há uma mensagem simbólica que procura despertar a consciência das sucessivas gerações para que os idosos tenham um entardecer de vida digno. Uma consciência que parece arredia de quem vem governando este país, onde a metade da manta é a miséria das soluções de solidariedade social que o Estado oferece aos seus idosos.

in JORNAL DE NOTÍCIAS, 31-10-2024


sábado, 21 de setembro de 2024

 


Luiz Paulo Manuel de Menezes de Mello Vaz de Sampayo, antigo Reitor da UTAD, poucos o saberão, mas foi também um notável historiador, um dos mais “incómodos” historiadores dos finais do séc. XX, ao corrigir graves erros da História de Portugal.

Por exemplo, como genealogista, demonstrou, com documentação irrefutável, o erro histórico ou a ilusão que outros historiadores alimentavam, sobre a nacionalidade portuguesa de Cristóvão Colombo.

Mas demonstrou mais: Portugal perdeu a independência para Espanha em 1580 por absoluta ignorância ou má-fé de uma certa nobreza frustrada ou falida desse tempo. Na verdade, o Prof. Sampayo, com quem tive o gosto de trabalhar, divulgou em 1997 o “assento de batismo” de D. António Prior do Crato, datado de 1544, que foi descobrir na Sé de Évora, o qual provava ser filho legítimo de D. Manuel I (e não ilegítimo como a História tem insistido ao longo dos séculos). Por essa razão, seria ele, legitimamente, o 18º Rei de Portugal e não, como sucedeu, o Rei Filipe II de Espanha. Para além da velha e triste ilusão de que D. Sebastião viria salvar a nação num cavalo branco em manhã de nevoeiro... foram 60 anos de hegemonia espanhola que nunca deveriam ter acontecido.

Luiz Sampayo nasceu em França e morreu em 2006, em Vila Real, praticamente ignorado pela comunidade e pelas instituições. Injustamente.

Aqui lhe presto a minha homenagem.


terça-feira, 27 de agosto de 2024

Portugal a ficar sem engenheiros florestais



            Os dias dramáticos que se viveram com os incêndios florestais na Madeira, a juntar a realidades trágicas ainda recentes que bem conhecemos, colocam, mais uma vez, o dedo numa ferida que o país teima em ignorar.

            Na comunidade científica, tem sido frequente a alusão a uma tipologia de “incêndios de sexta geração”, também designados por “tempestades de fogo”, fenómenos associados às alterações climáticas, que modificam a meteorologia no território, geram ventos erráticos, stress hídrico nos espaços florestais, o que aumenta a velocidade de propagação do fogo em todas as frentes.

Realidades novas impõem estratégias novas. Impõe-se uma visão de futuro para as especificidades do território. O Interior, abandonado, desumanizado, está sob ameaça crescente nestes períodos tórridos de verão. A floresta portuguesa precisa de uma revolução com medidas alicerçadas no conhecimento técnico-científico.

Paradoxalmente, assistimos ao abandono dos cursos de Engenharia Florestal no ensino superior. A Universidade de Lisboa (ISA) apenas conseguiu atrair sete candidatos na 1ª fase do concurso nacional de acesso. A UTAD e o Politécnico de Coimbra conseguiram, cada um, apenas dois. Está visto que os jovens fogem desta profissão como o diabo da cruz, apesar da necessidade acentuada dos agentes económicos na busca de tais profissionais. Por isso, não há desemprego. O que haverá é uma falta de comunicação ou motivação por parte das instituições com responsabilidades no processo. Adivinha-se, assim, um futuro ainda mais amargo para a floresta, com a falta destes profissionais.

Porque será que as áreas afins, como é o caso dos cursos de Biologia, têm grande adesão de alunos, quando se sabe (ou deveria saber) que a Engenharia Florestal é hoje uma Biologia Aplicada ao território e o seu papel é gerir todos os recursos naturais que nele existem e a sua biodiversidade?

Já é tempo de a floresta a ser notícia, não como um mundo de problemas, mas como um mundo de oportunidades.

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 27-8-2024


sexta-feira, 19 de julho de 2024

Fausto e o poder de poder dizer


Foi já visivelmente debilitado na sua frágil saúde que Fausto Bordalo Dias (1948-2024), numa entrevista televisiva, ousou pronunciar estas palavras: «Cabo Verde não existiria como país independente, se Portugal não tivesse levado para lá pessoas (…). Muitos países africanos foram mais felizes, infelizmente, com Portugal, do que são agora. Quando uma independência não concorre para a felicidade dos povos, alguma coisa está errada.».

Se outro fosse, que não Fausto, a dizê-lo, quantas vozes não trovejariam no vendaval dos céus político-mediáticos?

Na verdade, só a circunstância de ser um génio permite que assim o diga no desassombro de um jeito que, nos dias de hoje, é comum carimbar como politicamente incorreto. Só ao génio, levando em boa conta o pensamento estético de Kant, é permitido libertar-se dos valores impostos, afrontar consensos. O desvio da regra comum fica-lhe bem, a coragem é mérito. Livre de toda a culpa, o génio é uma espécie de herói que se alavanca na deformidade das normas. Para o homem medíocre, essa deformidade é um erro. Para o génio, não.

            “Eu sou eu e a minha circunstância, e, se não a salvo a ela, não me salvo a mim”, disse o filósofo Ortega y Gasset. Daí que o verdadeiro poder esteja sempre na circunstância do que somos. Primeiro, é preciso saber ser, mais do que saber estar. Saber estar é uma habilidade social, um modelo estratégico de adaptação a diferentes contextos sociais; saber ser é uma imposição de carácter, de autonomia, abnegação. É, pois, um dos requisitos mais poderosos da personalidade humana.

            Uma personalidade que Fausto, figura ímpar e irrepetível, o contador de histórias que pela música e metáfora das palavras pôde recontar alguns dos capítulos mais grandiosos da História de Portugal, consignou em páginas de ouro da música portuguesa.

in Jornal de Notícias, 19-7-2024


sexta-feira, 14 de junho de 2024

As origens transmontanas de Camões

 

A memória oral como recurso historiográfico sempre encontrou resistência nos olhares da academia tradicional. Contudo, reconhecem hoje muitos historiadores, acompanhando a visão dos antropólogos, o quanto vale a memória oral para suprimir a carência e/ou adulteração das fontes escritas, quando não entendidas como autossuficientes para a compreensão da História.

Perante isto, e em face das ambiguidades sobre as origens de Luís de Camões (não se sabe onde, nem quando, nem como nasceu, nem onde estudou ou quem lhe ensinou o muito que sabia), há que resgatar da memória oral a informação possível para preencher tamanhos vazios. Na verdade, a aldeia transmontana de Vilar de Nantes, muito próxima da Galiza, conserva a tradição oral secular de que as origens do poeta estão ali. A uma casa, que ostenta gravado o ano de 1574 como data de construção, o povo sempre chamou “Casa dos Camões”, e, à entrada da povoação, uma placa diz ser aquela a “terra do pai e avós de Camões”. E foi tocado por esta áurea da história oral que José Guilherme Calvão Borges, um militar e heraldista flaviense, conseguiu, no início da década de 70 do século passado, elementos seguros sobre a genealogia de Camões relativos à residência de Antão Vaz e Simão Vaz de Camões (respetivamente avô e pai do poeta) na aldeia de Vilar de Nantes.

 Também eu, num trabalho académico dos anos 90, assinalei um soneto de Camões, escrito em língua galega, que começa “Alá en Monte Rey, em Bal de Laça (,,,)”, com alusão, no seu horizonte visual, a uma jovem, de nome Biolante, camponesa, por quem o poeta se terá deslumbrado. Para quem não sabe, Monterrey e Vale de Lassa são localidades fronteiriças que se avistam de Vilar de Nantes. A presença deste soneto entre a vastíssima obra do poeta poderá, assim, documentar uma adolescência ali vivida.

Quando se inicia o cinquentenário de Camões, por que não desafiar as universidades, historiadores e linguistas para um estudo aprofundado sobre esta causa?


In JORNAL DE NOTÍCIAS, 14-06-2024


quinta-feira, 30 de maio de 2024

Aos 99 anos, é a “decana” dos animadores culturais

 


            Conheci-a num destes dias, nas minhas rotinas pelo país profundo, em busca dos tesouros da memória que hão de preencher o livro que tenho em mãos. Hermínia Coutinho, 99 anos, animadora cultural. Descobri-a na pequena aldeia de Couto, freguesia de Adoufe, numa vertente da serra do Alvão, com vistas para Vila Real. Recebeu-me, rodeada de taças, medalhas e diplomas, no seu pequeno gabinete do Centro Cultural “Mãos à Obra” que fundou há meio século e de que é presidente.

            Mas fundou também o Rancho Folclórico de Couto-Adoufe, de que não só é presidente como principal animadora, ensaiadora e compositora das suas mais impactantes modinhas. Faz versos e músicas como quem respira. “Faço uma poesia e ponho-lhe logo uma música em cima”, foi-me dizendo. Criou ainda o Grupo Etnográfico do Linho e pôs o povo inteiro da aldeia a cultivar o linho no campo, quando já esta atividade estava perdida. Montou depois um tear artesanal e organizou formação para raparigas de todo o país. “Algumas hoje são doutoras, mas aprenderam a tecer comigo”, confessou com orgulho.

            Pelo meio recolheu e publicou o cancioneiro tradicional da freguesia, fez peças de teatro, adaptou outras, e pôs os filhos, desde tenra idade, uns como atores, outros como executantes, a tocar acordeão, viola, violino, violão (um deles, Fernando Lapa, é nome cimeiro da música clássica como maestro e compositor; um dos netos já deu cartas no The Voice…).

            Certamente, no próximo 10 de junho, o Presidente Marcelo não vai incluí-la na lista de condecorações. Era só o que faltava! Há universos culturais e simbólicos enraizados no Portugal profundo que, por ignorância ou preconceito, sempre passaram ao largo da lógica snob e bafienta dos salões da capital.

            Socialista inflexível, o presidente Rui Santos escolheu-a, quase centenária, para sua mandatária nas eleições autárquicas em Vila Real. E ganhou. Também eu ganhei o dia quando a visitei em busca das suas histórias. Almas penadas, bruxas e lobisomens continuam a “fervilhar” nas suas memórias. Quem as quiser conhecer, procure-as no meu próximo livro.

in JORNAL DE NOTÍCIAS, 30-05-2024


quinta-feira, 18 de abril de 2024

O mito da Europa sequestrada

 

     Em tempos de crise e incerteza, seja de uma comunidade, seja de uma nação, ou de um continente, é sempre valioso recorrer à linguagem dos mitos, reinterpretando-os na sua simbologia. Não é em vão que a mitologia grega ecoa no tempo como cerne da sabedoria antiga, trazida por filósofos e poetas, na ideia de que a organização do mundo obedece aos desígnios e caprichos dos deuses.

    A Europa, Velho Continente, nasce de um mito: o mito de um rapto e sequestro de uma princesa com esse nome, filha do rei Agenor, que brincava livremente com as companheiras nos campos floridos da velha Fenícia. De beleza deslumbrante, personificava o tipo mais belo e doce que se podia imaginar. Daí que lhe não resistisse a gula de um deus supremo, Zeus, pai e soberano de um vasto roal de outros deuses, que a observava do Olimpo, e a raptou, transformado num touro gigante, transportando-a pelos mares para a ilha de Creta, onde, adotando a figura humana, a usou na sua luxúria e a fez rainha, deixando-a com três filhos, o mais velho Minos, futuro rei de Creta. 

    Quando o irmão de Europa, Cadmo, a procurou pelo mundo e a não achou, foi aconselhar-se com o oráculo de Delfos, que lhe lavrou a sentença: “Não continues a tua busca! A Europa, protegida por um deus, fundou uma nova Civilização! O mundo há de um dia render-se aos seus pés!” 

    E cumpriu-se a profecia. O nome da rainha de Creta ecoou de Nação em Nação, uniu culturas, religiões e etnias, aproximou os povos, construiu uma identidade. Hoje, Europa, novamente sequestrada, agora por interesses diabólicos, que alimentam duas guerras e acenam com o fantasma da sua desagregação, precisa de recuperar o sentido do velho mito, que serviu a Heródoto para lembrar que este mito guarda uma verdade, o que importa é saber interpretá-la. A Europa é, pois, uma invenção cultural, e, como diz T.S. Eliot, “se perecer como organismo espiritual, o que restará para a organizar materialmente já não será Europa”.

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 18-4-2024


sábado, 13 de abril de 2024

Ele faz acontecer o imaginário!

 

António Fontinha, mora dentro das histórias que conta. É um dos pioneiros da nova vaga da narração oral em Portugal. Com um talento invulgar, a que empresta toda a fisionomia do seu corpanzil esguio, todo ele é comunicação. Comunica com os braços e mãos enormes, as pernas, os ombros, os olhos, a boca, o nariz, as sobrancelhas, as carrancas, mais aquele sotaque meio alfacinha, meio alentejano, e desse jeito faz regressar os contos tradicionais à oralidade, ao seu habitat, num tempo em que os antigos narradores da memória já vão desaparecendo.

Descobri-o em 1998 quando estava a escrever o livro «A Comunicação e a Literatura Popular», que resultou da minha tese de mestrado em Ciências da Comunicação, e dei-o a conhecer aos meios académicos. E desde então ficámos grandes amigos. É hoje mais conhecido que feijão em cardápio de quartel. As escolas agitam-se para conseguirem tê-lo a contar histórias nas suas bibliotecas. Parabéns grande Fontinha, a ver se te encontro um dia destes!

https://www.facebook.com/alexandre.parafita.escritor


sexta-feira, 5 de abril de 2024

Contar com o Douro

 


Com a sugestiva denominação “Contos d’OIRO… ContaDOUROs”, prepara-se a companhia de teatro FILANDORRA para lançar, na região do Douro Património Mundial, um audacioso projeto de animação cénica e cultural, sob os auspícios da Direção-Geral das Artes, em torno do lendário do vasto território duriense.

Neste singular desafio, destinado a aproximar gerações, desde o ensino pré-escolar e ensino básico, à população sénior das IPSS e Misericórdias, estão contemplados os municípios de Peso da Régua, Sabrosa, Cinfães, Resende, Mesão Frio, Sta Marta de Penaguião, Vila Real, Lamego, Armamar, Moimenta da Beira, Murça, Alijó, Sernancelhe, Penedono, S. João da Pesqueira, Carrazeda de Ansiães, Foz-Côa, Figueira de Castelo Rodrigo e Freixo de Espada à Cinta.

            Com o Douro, graças à marca da UNESCO, colocado nas rotas mundiais, atraindo riqueza, expansão vinícola e turismo (mais de 200 mil visitantes anualmente sobem e descem o rio), é agora o tempo de um Douro oculto, um Douro cultural, de gente, de memórias, um Douro antigo gravado no trabalho ciclópico de um povo que, ao longo de séculos, cinzelou as margens de um rio, moldou a própria natureza, dotando-a de uma beleza singular. Um Douro onde as histórias brotam da paisagem, como se os penedos fossem castelos e o rumorejar do rio e das ribeiras a voz das personagens.

            Esta aventura, de contar o Douro com o Douro, vai certamente contribuir para a autoestima das populações, valorizando os seus conhecimentos, os seus saberes ancestrais, as suas manifestações de cultura popular, e garanti-los como herança para as gerações vindouras. Porque a cada geração cabe a responsabilidade de passar à seguinte o seu testemunho, para que o fio da memória não seja quebrado.

Felicito a FILANDORRA por esta visão dinâmica do território. Dinamizá-lo através da Cultura é a melhor forma de honrar os seus valores e as suas gentes.

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 4-4-2024


quinta-feira, 28 de março de 2024

Joaquim Miranda Sarmento

 


Corre-lhe nas veias sangue transmontano. Filho do meu saudoso amigo Zé Sarmento, de Curopos (antigo inspetor da Judiciária, um Homem de rara cultura, também licenciado em Gestão) e da minha amiga Aldina, de Espinhoso (uma Senhora de grande ternura, que tocava fundo na emoção a quem a ouvia), ambos precocemente falecidos.

Já em criança dava mostras de uma desenvoltura intelectual e perspicaz observação que lhe auguravam um rumo notável no futuro de Portugal.

Sabemos bem das armadilhas que lhe irão ser montadas. Especialmente pelos carroceiros birrentos da política que se estão a borrifar para o futuro e harmonia democrática da Nação.

Fico a torcer pelo seu sucesso. Não só pela admiração e amizade que partilhamos, mas pela convicção de que é ele, de facto, como Ministro de Estado e das Finanças, um dos mais valiosos ativos da nova governação de Portugal.

(Na foto, a receber, autografada, a minha «História da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro»)


quarta-feira, 13 de março de 2024

Tesouros da Memória

 


Atento aos impactos da globalização no pensamento e vivência das sociedades modernas, nos seus efeitos paradoxalmente homogeneizadores e desintegradores das identidades, abracei o projeto “Tesouros da Memória”, com incidência na região transmontana, no âmbito do Centro de Estudos em Letras da UTAD.


A preocupação maior é identificar e apresentar um vasto elenco de “narradores da memória”, tomando como valiosos os seus testemunhos na transmissão às novas gerações da memória cultural da sua comunidade. Na linha dos grandes teóricos (Benjamin, Le Goff, Proust…), reconhece-se que há uma ferida que as sociedades contemporâneas teimam em ignorar. O exercício dialógico intergeracional vai fraquejando década após década. A tradição e a memória diluem-se, com as novas gerações a encararem como anacrónica a mentalidade das gerações anteriores, o que resulta numa crise de valores a dar lugar a uma crise de identidade. E numa sociedade sem o aconchego da identidade e da memória, sem um quadro de referências sólidas e respeitáveis, as futuras gerações arriscam-se a viver desamparadas numa sociedade global. Como escreveu o Padre Fontes, “os povos são como as árvores; cortando-lhes as raízes, secam”.

 

Para este desenraizamento contribui o próprio Ministério da Educação ao permitir que a disciplina de História nas escolas tenha decaído para uma expressão minúscula, com consequências negativas na formação das novas gerações. Há valores, identidades, memórias, bem como o desenvolvimento do espírito crítico dos adultos de amanhã, que se perdem. A resposta ao que o hoje é estará sempre no que o ontem foi e como foi, porque nada começa agora, e o agora é a continuação do ontem, e o ontem é já um esboço do amanhã.


Por isso, é fatal desmemoriar uma Nação. Para melhor dominar um povo, basta "sugar-lhe" a memória, e, desse modo, eliminar-lhe a identidade. 

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 12-3-2024


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Querem lá eles saber de Cultura!

 


Apenas Paulo Raimundo e Rui Tavares (a quem tiro o meu chapéu) trouxeram a Cultura para os debates, o que significa que para os partidos do “arco”, aqueles que podem, na realidade, chegar ao poder, a Cultura pouco ou nada representa. A Cultura sempre deu poucos votos… e isso pode explicar tudo.

Mas ignorar que para uma vida verdadeiramente humana, para além do direito à Saúde, à Educação, ao Trabalho, à Habitação, à Justiça, há também o direito à Cultura, como indispensável à dignidade e ao livre desenvolvimento da personalidade de cada um (como diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948), traduz um grave retrocesso civilizacional.

A Cultura é o caminho para a humanização, é com ela que se constrói uma sociedade mais democrática, mais justa e mais solidária. Até porque o direito à Cultura está na base dos outros direitos. O homem sem Cultura será sempre o mais enganado, o mais humilhado e o mais explorado.

Infelizmente, só na hora em que convém (ficar bem no “boneco”), é que os políticos lá chegam. Mas na hora de arrebanhar votos… que se lixe a Cultura!

www.facebook.com/alexandre.parafita.escritor


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

 

Tenho em grande apreço os velhos contadores de histórias. Ainda que a sociedade moderna os ignore, não me canso de ir ao seu encontro ao Portugal profundo, às aldeias recônditas. Com eles resgatam-se memórias que são verdadeiros tesouros de cultura e saber. E ouvindo-os, sopram-se acendalhas que fazem um pouco mais de luz no entardecer das suas vidas.

            Agostinho Barreira, um velho pastor da Serra do Alvão, hoje com os seus 88 anos, é um desses contadores de histórias. Conta-as como as ouviu aos que já partiram, garantindo que muitas lhe chegaram à passagem de peregrinos, vagabundos, almocreves e galegos. Algumas são tão velhas como o mundo, do tempo em que os animais falavam.

            Num dos encontros em plena serra, enquanto admoestava com um assobio a cabrada e o rafeiro, confiou-me uma dessas narrações que, outrora, corriam entre as gentes que iam e vinham nas rogas do Douro.

            «Nessas grandes quintas, – contou-me – havia antigamente os criados, que faziam o trabalho do dia-a-dia. E havia os feitores que nada faziam e que só lá estavam para dar ordens. Acontece que alguns eram ruins e faziam a vida negra aos criados. Por isso, numa ocasião andava no seu trabalho um criado muito preocupado, a praguejar e a lamentar a sua sorte, pois estava para vir um novo feitor, e ele com medo que ainda fosse pior do que o anterior.

– Estamos mal. Vamos ter um novo feitor, manda-nos fazer isto, depois aquilo, depois mais isto e mais aquilo, vai ser o bonito...!

Ao pé dele, a ouvi-lo, estava o burro, e, de tanto o ouvir, já estava, também ele, preocupado. Até que lhe procurou:

– Olha lá, será que o novo feitor me vai pôr duas albardas?

– Não, duas albardas não!

– Então quero lá saber! Ele que venha, que a mim tanto se me dá!»

Mais do que uma oportuna visão pragmática da política (ou não estivéssemos à vista de nova luta eleitoral), esta metáfora mostra bem como o povo também sabe rir de si próprio. A forma mais saudável de rir.

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 26-1-2024


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Quem vai levar a carta a Garcia?

 

Desde que ingressei no mundo do jornalismo, em 1976, vi desaparecerem títulos de jornais que eram verdadeiros monumentos nacionais: a “República” em 1976, o “Século” em 1977, o “Jornal do Comércio” em 1985, o “Diário de Lisboa” em 1990, “O Diário” também em 1990, o “Diário Popular” em 1991, “O Primeiro de Janeiro” em 1991, “A Capital” em 2005 e, finalmente, também em 2005, “O Comércio do Porto” que atingia então 151 anos de vida, um jornal a que entreguei os melhores anos da minha juventude: primeiro estagiário, depois repórter, depois redator.

Saí em 1999, mas ainda hoje o retenho como a melhor escola de vida que tive. O que aprendi nas universidades que frequentei eram medronhos comparados com as framboesas que colhi naquela escola. Aprendi a enfrentar e a denunciar políticos corruptos, mentirosos e hipócritas, assim como bandidos, violadores, ladrões de estrada. Por isso, tantas vezes assentei praça nos tribunais como repórter e como réu. Depois, o jornal fechou e pronto. A sua morte foi acompanhada da mais impávida indiferença por parte dos meios culturais, políticos e económicos. Foi então que comecei a perceber que este Portugal já não era o mesmo. Um país que vê jogar fora um dos mais valiosos monumentos à cultura e à memória coletiva, e fica a assobiar para o lado, é um país a seguir um rumo estranho.

E agora temos as ameaças que pairam sobre o “nosso” JN, um dos últimos pilares do jornalismo de qualidade que se faz em Portugal. Perante os tempos tumultuosos que se conhecem em torno da sobrevivência do jornal, é de recear, no mínimo, a perda de uma identidade consolidada nos três séculos que percorreu, desde 1888.

Neste despontar de um Novo Ano, aqui manifesto os meus votos de que uma nova aurora permita que a luta dos jornalistas do JN pelos seus direitos não esmoreça. De contrário, nos trilhos de um jornalismo de qualidade, quem ficará para levar a carta a Garcia?