quarta-feira, 13 de março de 2024

Tesouros da Memória

 


Atento aos impactos da globalização no pensamento e vivência das sociedades modernas, nos seus efeitos paradoxalmente homogeneizadores e desintegradores das identidades, abracei o projeto “Tesouros da Memória”, com incidência na região transmontana, no âmbito do Centro de Estudos em Letras da UTAD.


A preocupação maior é identificar e apresentar um vasto elenco de “narradores da memória”, tomando como valiosos os seus testemunhos na transmissão às novas gerações da memória cultural da sua comunidade. Na linha dos grandes teóricos (Benjamin, Le Goff, Proust…), reconhece-se que há uma ferida que as sociedades contemporâneas teimam em ignorar. O exercício dialógico intergeracional vai fraquejando década após década. A tradição e a memória diluem-se, com as novas gerações a encararem como anacrónica a mentalidade das gerações anteriores, o que resulta numa crise de valores a dar lugar a uma crise de identidade. E numa sociedade sem o aconchego da identidade e da memória, sem um quadro de referências sólidas e respeitáveis, as futuras gerações arriscam-se a viver desamparadas numa sociedade global. Como escreveu o Padre Fontes, “os povos são como as árvores; cortando-lhes as raízes, secam”.

 

Para este desenraizamento contribui o próprio Ministério da Educação ao permitir que a disciplina de História nas escolas tenha decaído para uma expressão minúscula, com consequências negativas na formação das novas gerações. Há valores, identidades, memórias, bem como o desenvolvimento do espírito crítico dos adultos de amanhã, que se perdem. A resposta ao que o hoje é estará sempre no que o ontem foi e como foi, porque nada começa agora, e o agora é a continuação do ontem, e o ontem é já um esboço do amanhã.


Por isso, é fatal desmemoriar uma Nação. Para melhor dominar um povo, basta "sugar-lhe" a memória, e, desse modo, eliminar-lhe a identidade. 

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 12-3-2024


quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Querem lá eles saber de Cultura!

 


Apenas Paulo Raimundo e Rui Tavares (a quem tiro o meu chapéu) trouxeram a Cultura para os debates, o que significa que para os partidos do “arco”, aqueles que podem, na realidade, chegar ao poder, a Cultura pouco ou nada representa. A Cultura sempre deu poucos votos… e isso pode explicar tudo.

Mas ignorar que para uma vida verdadeiramente humana, para além do direito à Saúde, à Educação, ao Trabalho, à Habitação, à Justiça, há também o direito à Cultura, como indispensável à dignidade e ao livre desenvolvimento da personalidade de cada um (como diz a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948), traduz um grave retrocesso civilizacional.

A Cultura é o caminho para a humanização, é com ela que se constrói uma sociedade mais democrática, mais justa e mais solidária. Até porque o direito à Cultura está na base dos outros direitos. O homem sem Cultura será sempre o mais enganado, o mais humilhado e o mais explorado.

Infelizmente, só na hora em que convém (ficar bem no “boneco”), é que os políticos lá chegam. Mas na hora de arrebanhar votos… que se lixe a Cultura!

www.facebook.com/alexandre.parafita.escritor


sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

 

Tenho em grande apreço os velhos contadores de histórias. Ainda que a sociedade moderna os ignore, não me canso de ir ao seu encontro ao Portugal profundo, às aldeias recônditas. Com eles resgatam-se memórias que são verdadeiros tesouros de cultura e saber. E ouvindo-os, sopram-se acendalhas que fazem um pouco mais de luz no entardecer das suas vidas.

            Agostinho Barreira, um velho pastor da Serra do Alvão, hoje com os seus 88 anos, é um desses contadores de histórias. Conta-as como as ouviu aos que já partiram, garantindo que muitas lhe chegaram à passagem de peregrinos, vagabundos, almocreves e galegos. Algumas são tão velhas como o mundo, do tempo em que os animais falavam.

            Num dos encontros em plena serra, enquanto admoestava com um assobio a cabrada e o rafeiro, confiou-me uma dessas narrações que, outrora, corriam entre as gentes que iam e vinham nas rogas do Douro.

            «Nessas grandes quintas, – contou-me – havia antigamente os criados, que faziam o trabalho do dia-a-dia. E havia os feitores que nada faziam e que só lá estavam para dar ordens. Acontece que alguns eram ruins e faziam a vida negra aos criados. Por isso, numa ocasião andava no seu trabalho um criado muito preocupado, a praguejar e a lamentar a sua sorte, pois estava para vir um novo feitor, e ele com medo que ainda fosse pior do que o anterior.

– Estamos mal. Vamos ter um novo feitor, manda-nos fazer isto, depois aquilo, depois mais isto e mais aquilo, vai ser o bonito...!

Ao pé dele, a ouvi-lo, estava o burro, e, de tanto o ouvir, já estava, também ele, preocupado. Até que lhe procurou:

– Olha lá, será que o novo feitor me vai pôr duas albardas?

– Não, duas albardas não!

– Então quero lá saber! Ele que venha, que a mim tanto se me dá!»

Mais do que uma oportuna visão pragmática da política (ou não estivéssemos à vista de nova luta eleitoral), esta metáfora mostra bem como o povo também sabe rir de si próprio. A forma mais saudável de rir.

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 26-1-2024


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Quem vai levar a carta a Garcia?

 

Desde que ingressei no mundo do jornalismo, em 1976, vi desaparecerem títulos de jornais que eram verdadeiros monumentos nacionais: a “República” em 1976, o “Século” em 1977, o “Jornal do Comércio” em 1985, o “Diário de Lisboa” em 1990, “O Diário” também em 1990, o “Diário Popular” em 1991, “O Primeiro de Janeiro” em 1991, “A Capital” em 2005 e, finalmente, também em 2005, “O Comércio do Porto” que atingia então 151 anos de vida, um jornal a que entreguei os melhores anos da minha juventude: primeiro estagiário, depois repórter, depois redator.

Saí em 1999, mas ainda hoje o retenho como a melhor escola de vida que tive. O que aprendi nas universidades que frequentei eram medronhos comparados com as framboesas que colhi naquela escola. Aprendi a enfrentar e a denunciar políticos corruptos, mentirosos e hipócritas, assim como bandidos, violadores, ladrões de estrada. Por isso, tantas vezes assentei praça nos tribunais como repórter e como réu. Depois, o jornal fechou e pronto. A sua morte foi acompanhada da mais impávida indiferença por parte dos meios culturais, políticos e económicos. Foi então que comecei a perceber que este Portugal já não era o mesmo. Um país que vê jogar fora um dos mais valiosos monumentos à cultura e à memória coletiva, e fica a assobiar para o lado, é um país a seguir um rumo estranho.

E agora temos as ameaças que pairam sobre o “nosso” JN, um dos últimos pilares do jornalismo de qualidade que se faz em Portugal. Perante os tempos tumultuosos que se conhecem em torno da sobrevivência do jornal, é de recear, no mínimo, a perda de uma identidade consolidada nos três séculos que percorreu, desde 1888.

Neste despontar de um Novo Ano, aqui manifesto os meus votos de que uma nova aurora permita que a luta dos jornalistas do JN pelos seus direitos não esmoreça. De contrário, nos trilhos de um jornalismo de qualidade, quem ficará para levar a carta a Garcia?


terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Extingue-se a Direção Regional de Cultura…e depois?

 


“Povos do interior, uni-vos!” Em jeito de exortação, foi com estas palavras que Pedro Santana Lopes, Secretário de Estado da Cultura em 1994, marcou o seu discurso na abertura, em Vila Real, da Delegação Regional da Cultura do Norte, ao ousar transferi-la do Porto para Trás-os-Montes.

As intensões do governante eram claras. A capital do Norte já estava bem servida de equipamentos culturais. Era chegada a hora de descentralizar os serviços e dinamizar o interior cultural, “com vista à criação de condições de acesso aos bens culturais em todo o território nacional e de uma forma geograficamente equilibrada” (Dec. Reg. Nº 3/94 de 9 de Fevereiro).

Tal decisão abalou, não apenas o “estatuto” quase aristocrático da Invicta como macrocosmos cultural, mas também os interesses aí instalados, ao ponto de, dois anos passados, com novo partido, novo governo e muitas pressões políticas, ser anunciado o regresso da Delegação ao Porto. Um propósito só travado por um extenso baixo-assinado que dezenas de instituições e agentes culturais transmontanos fizeram chegar, em novembro de 1996, ao Ministro Manuel Maria Carrilho, com fundamentos que terão valido (pelo menos na teoria) para que, extinta a Delegação Regional em 2006, a Direção-Regional de Cultura do Norte (DRCN) conservasse a sede em Vila Real.

Finalmente, decidida a extinção da DRCN e as suas competências a passarem para organismos sedeados no Porto (mas que bela descentralização!), um desses organismos, designado “Património Cultural, I.P.”, vai ter por missão a salvaguarda do património cultural imóvel e imaterial. O decreto-lei que o criou identifica a audição de nove organizações e associações de reconhecido mérito. Porém, não vi aí a Associação Portuguesa para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, a única que conheço com know- how credível no domínio do PCI. Uma lacuna incompreensível.

in Jornal de Notícias, 19-12-2023 


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

O JN, não!

 


Desde que ingressei no mundo do jornalismo, em 1976, vi desaparecerem títulos de jornais que eram verdadeiros monumentos culturais.  A “República” em 1976, o “Século” em 1977, o “Jornal do Comércio” em 1985, o “Diário de Lisboa” em 1990, “O Diário” também em 1990, o “Diário Popular” em 1991, “O Primeiro de Janeiro” em 1991, “A Capital” em 2005 e, finalmente, também em 2005, “O Comércio do Porto” (atingia então 151 anos de vida, um jornal onde gastei os melhores anos da minha juventude).

Portugal foi ficando mais pobre. Culturalmente, é o que se vê.

Agora, está em risco o “Jornal de Notícias”. A notícia do despedimento coletivo de 40 jornalistas, que representam metade da sua redação, deixam-me perplexo quanto ao seu futuro. O que virá a seguir, é um jornalismo de menor qualidade. Afinal, a medida certa para um país que, cada vez mais, teima em nivelar-se por baixo em tudo.

Registo aqui a minha solidariedade com os profissionais do JN que hoje e amanhã estão em greve. Lutam pelos seus direitos, mas lutam também pela garantia de um jornalismo de qualidade, a que este centenário jornal nos habituou.


sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Quem são, afinal, os mouros?

 


            A convite do Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves, coube-me participar naquela bonita cidade algarvia num interessante simpósio sobre as múltiplas expressões do legado cultural Al-Andaluz em Portugal. Um profícuo momento para reposicionar, na história e na tradição, o conceito de “mouro” que os manuais escolares e os catecismos nos mostraram, no quadro da Reconquista Cristã, como um povo invasor e cruel, com as inerentes consequências na construção de um imaginário popular negativo projetado nas lendas.

            Em boa verdade, a grande maioria das lendas e as narrações históricas que as inspiram ignoram o lado fascinante dos árabes, mesmo com os estudos cientificamente credíveis a deixarem claro como a chamada Invasão Muçulmana foi essencialmente uma invasão cultural. Ninguém invade território algum sob o poder das armas quando traz consigo o seu agregado familiar. De resto, tendo estado por cá oito séculos, como poderiam ter permanecido numa lógica exclusiva de perversidade e opressão?

            Ainda hoje, vemos uma má vontade coletiva alimentada pela tradição em relação aos mouros. No Norte, muitos tentam ofender os do Sul chamando-lhes “mouros” e conhecem-se provérbios como “Quem tem padrinhos não morre mouro” ou “Quem não poupa seu mouro não poupa seu ouro”.

            Vale, pois, refletir sobre se o Islão em Portugal trouxe, ou não, mais fascínio que perversidade. Pode até descobrir-se como as mouras perigosamente sedutoras das lendas e os mouros sinistros, noturnos e subterrâneos, mais não são do que entidades mitificadas que o imaginário construiu no seio de uma histórica urdidura político-teológica. São o paradigma do Outro. Um Outro que nós próprios projetamos num espelho do qual muitos teimam em ver apenas a face que mais convém. A face politicamente correta. Por isso, digam no Norte o que disserem do Sul… à certa, mouros somos todos nós.

(ap)

in Jornal de Notícias, 27-10-2023