domingo, 6 de dezembro de 2020

A miséria e a morte


É conhecido em Trás-os-Montes um velho conto popular que alegoriza um pacto estratégico entre a “miséria” e a “morte”. Nele se conta que a “Tia Miséria”, uma velhinha desejosa de se perpetuar, conseguiu fazer um acordo com a “morte”, de maneira a decidiram em conjunto quem esta deveria, ou não, levar com ela.

 

Nada mais do que uma alegoria, bem se vê. E como todas as alegorias, também esta vem ilustrar a triste realidade a que a cultura vem sendo votada pelo governo no interior do país. Mais uma vez, como se tornou público nos últimos dias, a distribuição dos apoios estatais à criação teatral excluiu as companhias de teatro no interior norte, beneficiando as da zona de Lisboa.  A miséria a que estão sistematicamente condenados pelo Ministério da Cultura representa, a prazo, uma ameaça de morte sobre as companhias e projetos teatrais do interior. O Ministério, ou quem no seu seio toma as decisões que bem entende, faz assim o papel dessa tal “Tia Miséria”, escolhendo quem tem ou não o direito de sobreviver neste inquietante universo de náufragos que acorre ao seu auxílio.

 

De pouco ou nada valem as experiências de longos anos de luta no interior do país, num esforço de verdadeiros heróis da descentralização cultural, fazendo chegar o teatro às escolas, jardins de infância, cineteatros, lares de idosos, terreiros de aldeias ou igrejas, e desafiar as populações rurais a interagir com obras e autores emblemáticos (Raul Brandão, Tcheckov, Lorca, Molière, Torga, Garrett, Gil Vicente, Brecht, José Luís Peixoto, Saramago, Shakespeare…).

 

Algo vai mal neste teatro de sombras, comandado em Lisboa, onde o destino das companhias de teatro do interior está à mercê de um jogo performativo cruel, o da indiferença de quem governa a cultura deste país.


In JORNAL DE NOTÍCIAS, 4-12-2020


terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Eduardo Lourenço (1923-2020)


 A morte é sempre uma perda. Mas mais ainda quando se esgota no vazio que deixa. Não é o caso. O grande pensador e filósofo, hoje desaparecido, deixa um legado eterno para uma pátria inteira. Um legado de cultura, saber e humanidade, capaz de nos fazer pensar sobre o que realmente somos como povo e como pátria, desafiando a uma reflexão necessária sobre a incontornável fragilidade da condição que escondemos de nós mesmos: a de uma nação de pobres com mentalidade de ricos.


quarta-feira, 25 de novembro de 2020

O mito da mutilação genital de meninas

 


Em nome de uma tradição ritualística de “purificação”, que perdura há séculos, estima-se que haja, em Portugal, cerca de 6.500 mulheres sujeitas ao processo de mutilação genital enquanto meninas. Mesmo sendo uma prática punida com prisão, alguns micro-universos culturais mantêm-na, assumindo os valores da tradição como superiores aos que a lei consagra. E apesar das repetidas denúncias pelas organizações de direitos humanos, só agora surgiu o primeiro caso em julgamento nos tribunais.

Não pode, contudo, a reflexão que se impõe esgotar-se na necessidade de aplicar uma pena exemplar perante o crime hediondo. Imperioso é também refletir sobre o que é ou não legítimo reconhecer e preservar como tradição. A tradição não é uma repetição mecânica do passado. É o passado renovado. Segue, por isso, um percurso que implica perda ou diluição de práticas que, estética ou eticamente, afrontam os novos valores civilizacionais. Se assim não fosse, estaríamos ainda hoje a aplaudir nas ruas muitas das práticas medievais repugnantes.

Sou ainda do tempo em que havia a tradição das lutas de galos nos recreios das escolas. Hoje nenhum miúdo acharia deslumbramento nesse entretém (tal como, certamente, amanhã poucos ou nenhuns de nós o acharão em espetáculos de fácies medievas como são as touradas). No império romano, seres humanos digladiavam-se até à morte nas arenas, perante o aplauso das plateias. São realidades que a civilização extinguiu. Ficaram na história ou na memória, para que sobre elas reflitamos e estudemos, e nada mais.

Rasgar o corpo inocente de meninas, num ato diabolizador do prazer sexual, é roubar-lhes o direito ao futuro, o direito à felicidade. Como tradição, é hoje inconcebível.


(ap)

Jornal de Notícias, 25.11.2020

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

Um barril de pólvora à porta das escolas

Ainda que no interior se cumpram as regras estabelecidas (o que em muitos casos não acontece, quando os alunos, embora de máscara, estão sentados na mesma mesa e se acotovelam…), assiste-se, à porta das escolas, a uma balbúrdia completa. Os alunos amontoam-se, sem máscara, uns a fumar, outros ao telemóvel, outros a conviver numa absoluta indiferença perante o drama que vivemos. Assisto a isso diariamente onde passo. Daí que não nos espantem os resultados conhecidos em que já poucas são as escolas sem alunos infetados.

De que vale criar as tais “bolhas” dentro da escola, se no exterior estão a instalar-se “barris” de pólvora?

Mas muita imprudência mora também dentro dos estabelecimentos, quando os diretores impõem, fora dos horários de aulas, reuniões presenciais de professores, que podiam, com a mesma eficácia, decorrer à distância em regime virtual. E assim se contribui, ingénua, ou hipocritamente, para que este drama não tenha fim.

(ap)

in Diário de Trás-os-Montes