quinta-feira, 18 de abril de 2024

O mito da Europa sequestrada

 

     Em tempos de crise e incerteza, seja de uma comunidade, seja de uma nação, ou de um continente, é sempre valioso recorrer à linguagem dos mitos, reinterpretando-os na sua simbologia. Não é em vão que a mitologia grega ecoa no tempo como cerne da sabedoria antiga, trazida por filósofos e poetas, na ideia de que a organização do mundo obedece aos desígnios e caprichos dos deuses.

    A Europa, Velho Continente, nasce de um mito: o mito de um rapto e sequestro de uma princesa com esse nome, filha do rei Agenor, que brincava livremente com as companheiras nos campos floridos da velha Fenícia. De beleza deslumbrante, personificava o tipo mais belo e doce que se podia imaginar. Daí que lhe não resistisse a gula de um deus supremo, Zeus, pai e soberano de um vasto roal de outros deuses, que a observava do Olimpo, e a raptou, transformado num touro gigante, transportando-a pelos mares para a ilha de Creta, onde, adotando a figura humana, a usou na sua luxúria e a fez rainha, deixando-a com três filhos, o mais velho Minos, futuro rei de Creta. 

    Quando o irmão de Europa, Cadmo, a procurou pelo mundo e a não achou, foi aconselhar-se com o oráculo de Delfos, que lhe lavrou a sentença: “Não continues a tua busca! A Europa, protegida por um deus, fundou uma nova Civilização! O mundo há de um dia render-se aos seus pés!” 

    E cumpriu-se a profecia. O nome da rainha de Creta ecoou de Nação em Nação, uniu culturas, religiões e etnias, aproximou os povos, construiu uma identidade. Hoje, Europa, novamente sequestrada, agora por interesses diabólicos, que alimentam duas guerras e acenam com o fantasma da sua desagregação, precisa de recuperar o sentido do velho mito, que serviu a Heródoto para lembrar que este mito guarda uma verdade, o que importa é saber interpretá-la. A Europa é, pois, uma invenção cultural, e, como diz T.S. Eliot, “se perecer como organismo espiritual, o que restará para a organizar materialmente já não será Europa”.

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 18-4-2024


sábado, 13 de abril de 2024

Ele faz acontecer o imaginário!

 

António Fontinha, mora dentro das histórias que conta. É um dos pioneiros da nova vaga da narração oral em Portugal. Com um talento invulgar, a que empresta toda a fisionomia do seu corpanzil esguio, todo ele é comunicação. Comunica com os braços e mãos enormes, as pernas, os ombros, os olhos, a boca, o nariz, as sobrancelhas, as carrancas, mais aquele sotaque meio alfacinha, meio alentejano, e desse jeito faz regressar os contos tradicionais à oralidade, ao seu habitat, num tempo em que os antigos narradores da memória já vão desaparecendo.

Descobri-o em 1998 quando estava a escrever o livro «A Comunicação e a Literatura Popular», que resultou da minha tese de mestrado em Ciências da Comunicação, e dei-o a conhecer aos meios académicos. E desde então ficámos grandes amigos. É hoje mais conhecido que feijão em cardápio de quartel. As escolas agitam-se para conseguirem tê-lo a contar histórias nas suas bibliotecas. Parabéns grande Fontinha, a ver se te encontro um dia destes!

https://www.facebook.com/alexandre.parafita.escritor


sexta-feira, 5 de abril de 2024

Contar com o Douro

 


Com a sugestiva denominação “Contos d’OIRO… ContaDOUROs”, prepara-se a companhia de teatro FILANDORRA para lançar, na região do Douro Património Mundial, um audacioso projeto de animação cénica e cultural, sob os auspícios da Direção-Geral das Artes, em torno do lendário do vasto território duriense.

Neste singular desafio, destinado a aproximar gerações, desde o ensino pré-escolar e ensino básico, à população sénior das IPSS e Misericórdias, estão contemplados os municípios de Peso da Régua, Sabrosa, Cinfães, Resende, Mesão Frio, Sta Marta de Penaguião, Vila Real, Lamego, Armamar, Moimenta da Beira, Murça, Alijó, Sernancelhe, Penedono, S. João da Pesqueira, Carrazeda de Ansiães, Foz-Côa, Figueira de Castelo Rodrigo e Freixo de Espada à Cinta.

            Com o Douro, graças à marca da UNESCO, colocado nas rotas mundiais, atraindo riqueza, expansão vinícola e turismo (mais de 200 mil visitantes anualmente sobem e descem o rio), é agora o tempo de um Douro oculto, um Douro cultural, de gente, de memórias, um Douro antigo gravado no trabalho ciclópico de um povo que, ao longo de séculos, cinzelou as margens de um rio, moldou a própria natureza, dotando-a de uma beleza singular. Um Douro onde as histórias brotam da paisagem, como se os penedos fossem castelos e o rumorejar do rio e das ribeiras a voz das personagens.

            Esta aventura, de contar o Douro com o Douro, vai certamente contribuir para a autoestima das populações, valorizando os seus conhecimentos, os seus saberes ancestrais, as suas manifestações de cultura popular, e garanti-los como herança para as gerações vindouras. Porque a cada geração cabe a responsabilidade de passar à seguinte o seu testemunho, para que o fio da memória não seja quebrado.

Felicito a FILANDORRA por esta visão dinâmica do território. Dinamizá-lo através da Cultura é a melhor forma de honrar os seus valores e as suas gentes.

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 4-4-2024