Conheci-a num destes dias, nas
minhas rotinas pelo país profundo, em busca dos tesouros da memória que hão de
preencher o livro que tenho em mãos. Hermínia Coutinho, 99 anos, animadora
cultural. Descobri-a na pequena aldeia de Couto, freguesia de Adoufe, numa
vertente da serra do Alvão, com vistas para Vila Real. Recebeu-me, rodeada de
taças, medalhas e diplomas, no seu pequeno gabinete do Centro Cultural “Mãos à
Obra” que fundou há meio século e de que é presidente.
Mas fundou também o Rancho
Folclórico de Couto-Adoufe, de que não só é presidente como principal
animadora, ensaiadora e compositora das suas mais impactantes modinhas. Faz
versos e músicas como quem respira. “Faço uma poesia e ponho-lhe logo uma
música em cima”, foi-me dizendo. Criou ainda o Grupo Etnográfico do Linho e pôs
o povo inteiro da aldeia a cultivar o linho no campo, quando já esta atividade
estava perdida. Montou depois um tear artesanal e organizou formação para
raparigas de todo o país. “Algumas hoje são doutoras, mas aprenderam a tecer
comigo”, confessou com orgulho.
Pelo meio recolheu e publicou o
cancioneiro tradicional da freguesia, fez peças de teatro, adaptou outras, e
pôs os filhos, desde tenra idade, uns como atores, outros como executantes, a
tocar acordeão, viola, violino, violão (um deles, Fernando Lapa, é nome cimeiro
da música clássica como maestro e compositor; um dos netos já deu cartas no The
Voice…).
Certamente, no próximo 10 de junho,
o Presidente Marcelo não vai incluí-la na lista de condecorações. Era só o que
faltava! Há universos culturais e simbólicos enraizados no Portugal profundo
que, por ignorância ou preconceito, sempre passaram ao largo da lógica snob e
bafienta dos salões da capital.
Socialista inflexível, o presidente
Rui Santos escolheu-a, quase centenária, para sua mandatária nas eleições autárquicas
em Vila Real. E ganhou. Também eu ganhei o dia quando a visitei em busca das
suas histórias. Almas penadas, bruxas e lobisomens continuam a “fervilhar” nas
suas memórias. Quem as quiser conhecer, procure-as no meu próximo livro.
in JORNAL DE NOTÍCIAS, 30-05-2024