terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Extingue-se a Direção Regional de Cultura…e depois?

 


“Povos do interior, uni-vos!” Em jeito de exortação, foi com estas palavras que Pedro Santana Lopes, Secretário de Estado da Cultura em 1994, marcou o seu discurso na abertura, em Vila Real, da Delegação Regional da Cultura do Norte, ao ousar transferi-la do Porto para Trás-os-Montes.

As intensões do governante eram claras. A capital do Norte já estava bem servida de equipamentos culturais. Era chegada a hora de descentralizar os serviços e dinamizar o interior cultural, “com vista à criação de condições de acesso aos bens culturais em todo o território nacional e de uma forma geograficamente equilibrada” (Dec. Reg. Nº 3/94 de 9 de Fevereiro).

Tal decisão abalou, não apenas o “estatuto” quase aristocrático da Invicta como macrocosmos cultural, mas também os interesses aí instalados, ao ponto de, dois anos passados, com novo partido, novo governo e muitas pressões políticas, ser anunciado o regresso da Delegação ao Porto. Um propósito só travado por um extenso baixo-assinado que dezenas de instituições e agentes culturais transmontanos fizeram chegar, em novembro de 1996, ao Ministro Manuel Maria Carrilho, com fundamentos que terão valido (pelo menos na teoria) para que, extinta a Delegação Regional em 2006, a Direção-Regional de Cultura do Norte (DRCN) conservasse a sede em Vila Real.

Finalmente, decidida a extinção da DRCN e as suas competências a passarem para organismos sedeados no Porto (mas que bela descentralização!), um desses organismos, designado “Património Cultural, I.P.”, vai ter por missão a salvaguarda do património cultural imóvel e imaterial. O decreto-lei que o criou identifica a audição de nove organizações e associações de reconhecido mérito. Porém, não vi aí a Associação Portuguesa para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, a única que conheço com know- how credível no domínio do PCI. Uma lacuna incompreensível.

in Jornal de Notícias, 19-12-2023 


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

O JN, não!

 


Desde que ingressei no mundo do jornalismo, em 1976, vi desaparecerem títulos de jornais que eram verdadeiros monumentos culturais.  A “República” em 1976, o “Século” em 1977, o “Jornal do Comércio” em 1985, o “Diário de Lisboa” em 1990, “O Diário” também em 1990, o “Diário Popular” em 1991, “O Primeiro de Janeiro” em 1991, “A Capital” em 2005 e, finalmente, também em 2005, “O Comércio do Porto” (atingia então 151 anos de vida, um jornal onde gastei os melhores anos da minha juventude).

Portugal foi ficando mais pobre. Culturalmente, é o que se vê.

Agora, está em risco o “Jornal de Notícias”. A notícia do despedimento coletivo de 40 jornalistas, que representam metade da sua redação, deixam-me perplexo quanto ao seu futuro. O que virá a seguir, é um jornalismo de menor qualidade. Afinal, a medida certa para um país que, cada vez mais, teima em nivelar-se por baixo em tudo.

Registo aqui a minha solidariedade com os profissionais do JN que hoje e amanhã estão em greve. Lutam pelos seus direitos, mas lutam também pela garantia de um jornalismo de qualidade, a que este centenário jornal nos habituou.


sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Quem são, afinal, os mouros?

 


            A convite do Centro de Estudos Luso-Árabes de Silves, coube-me participar naquela bonita cidade algarvia num interessante simpósio sobre as múltiplas expressões do legado cultural Al-Andaluz em Portugal. Um profícuo momento para reposicionar, na história e na tradição, o conceito de “mouro” que os manuais escolares e os catecismos nos mostraram, no quadro da Reconquista Cristã, como um povo invasor e cruel, com as inerentes consequências na construção de um imaginário popular negativo projetado nas lendas.

            Em boa verdade, a grande maioria das lendas e as narrações históricas que as inspiram ignoram o lado fascinante dos árabes, mesmo com os estudos cientificamente credíveis a deixarem claro como a chamada Invasão Muçulmana foi essencialmente uma invasão cultural. Ninguém invade território algum sob o poder das armas quando traz consigo o seu agregado familiar. De resto, tendo estado por cá oito séculos, como poderiam ter permanecido numa lógica exclusiva de perversidade e opressão?

            Ainda hoje, vemos uma má vontade coletiva alimentada pela tradição em relação aos mouros. No Norte, muitos tentam ofender os do Sul chamando-lhes “mouros” e conhecem-se provérbios como “Quem tem padrinhos não morre mouro” ou “Quem não poupa seu mouro não poupa seu ouro”.

            Vale, pois, refletir sobre se o Islão em Portugal trouxe, ou não, mais fascínio que perversidade. Pode até descobrir-se como as mouras perigosamente sedutoras das lendas e os mouros sinistros, noturnos e subterrâneos, mais não são do que entidades mitificadas que o imaginário construiu no seio de uma histórica urdidura político-teológica. São o paradigma do Outro. Um Outro que nós próprios projetamos num espelho do qual muitos teimam em ver apenas a face que mais convém. A face politicamente correta. Por isso, digam no Norte o que disserem do Sul… à certa, mouros somos todos nós.

(ap)

in Jornal de Notícias, 27-10-2023


quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Começar a ser grande com os livros

 

“Quem não aprende a gostar de ler aos dois, três, quatro, cinco, seis anos, mais dificilmente adere a esse prazer pelos oito, dez, doze, catorze anos”. Assim escreveu Marcelo Rebelo de Sousa, em 2006, enquanto agente e divulgador cultural, no prefácio de uma obra de reflexão sobre a nova Literatura para a Infância.

Na mesma sintonia, Fernando Azevedo, diretor do Programa de Doutoramento em Estudos da Criança da Universidade do Minho, defendeu que, “desde uma idade precoce, de preferência ainda antes do nascimento, a criança seja familiarizada com hábitos e práticas de leitura”, reconhecendo, assim, o papel primordial da família, mas também a convicção de que as crianças, no seu percurso de vida, irão manifestar maior motivação para a leitura se reconhecerem como socialmente relevante essa atividade, e esse reconhecimento ganha corpo quando observam os pais a ler e a escrever, isto é, a desenvolver práticas de literacia.

No início dos anos letivos, no ensino superior, sempre me deparei com jovens que são, à partida, bons leitores, e por isso cultos, bem-falantes, ágeis intelectualmente, e outros que o não são. Sempre os interroguei sobre os seus percursos, as influências recebidas, e constato que os mais cultos, mais inteligentes, mais capazes, tiveram na infância, no seio da família e da escola, um convívio marcante com a literatura infantil. Na família, ouvindo canções de berço, lengalengas, histórias ao deitar. No jardim-de-infância e na escola, com a magia do livro, as visitas à biblioteca escolar, as horas do conto, os encontros com escritores…

 Dedico estas palavras aos professores e, em especial, aos bibliotecários escolares, que com o seu labor e criatividade transformam a escola num verdadeiro reino de afetos. Começar a ser grande com os livros é o desafio. Uma parte de nós constrói-se com o que lemos. A outra com as emoções que cultivamos. Dentro e fora de nós.


In Jornal de Notícias, 10-10-2013


quinta-feira, 5 de outubro de 2023

O que simboliza, afinal, o 5 de outubro?

 

1 . A UNESCO, em 1994, criou o Dia Mundial do Professor para ser celebrado a 5 de outubro. Um dia para homenagear os professores e reafirmar a dignidade e a importância que lhes é devida enquanto pilar da sociedade. Algo que, infelizmente, em Portugal, anda deveras ignorado, e, por isso, os professores não param de lutar.

2 . Mas Portugal adotou a mesma data para comemoração da Implantação da República, contemplando-a com um feriado nacional.

3 . Entretanto, parece andar esquecido que foi também a 5 de outubro de 1143 que nasceu Portugal como nação independente. O Tratado de Zamora, resultante da conferência de paz entre D. Afonso Henriques e Afonso VII de Leão, seu primo, que aconteceu neste dia, assinala o nascimento do Reino de Portugal. Uma boa razão, pois, para celebrar também a mesma data com esse significado.

Portanto, para mim, Professor e Republicano, mas irredutível respeitador da História de Portugal, o feriado do 5 de outubro vale por tudo o que vai dito.

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terça-feira, 26 de setembro de 2023

A paz não se dá…

 

Ouvi, há anos, a um velho transmontano, de Espinhoso, Vinhais, desses que designo de “narradores da memória”, esta singela parábola: Quando Nosso Senhor andava pelo mundo, juntaram-se uns poucos de fiéis e foram pedir-lhe:

– Divino Mestre, precisamos de ser felizes. E como somos bons cristãos, apenas vos pedimos quatro coisas: pão, carne, vinho e paz.

Nosso Senhor respondeu:

– Só posso dar-vos pão, carne e vinho. A paz tereis de ser vós a consegui-la.

É ouvindo estas singulares lições, que os flagelos de um tempo atulhado de hostilidades e incertezas fazem permanecer atuais, que, há muito, me bato pela urgência em reconhecer como válida esta outra “universidade”. Infelizmente estas “escolas” estão a fechar depressa demais. E, pelo caminho, vão ficando por descobrir as valiosas teorias filosóficas de um povo sábio. Um povo de olhos no Céu para achar respostas na Terra.

Para ouvi-lo, há que ir ao terreno, indagar sobre a pragmática dos seus saberes. Saberes convertidos em histórias que nos lisonjeiam a alma. Saberes que não aprenderam nos livros, mas em aulas práticas nas convenções e rotinas das tornajeiras e vezeiras, partilhas de água, na energia cinética dos moinhos, nos fiandeiros, na urdideira dos teares, nas celebrações rituais, nas rotinas ecotelúricas do minguante ao crescente, no belo horrível das tempestades, na espiritualidade das crenças, na estética do nascer e pôr-do-sol, na sinfonia dos campos e dos bosques, ou no silêncio diáfano das montanhas. Aí se recebem valiosas lições de economia aplicada, de epistemologia das ciências experimentais, lógica e retórica, semiótica das linguagens, metafísica, filosofia da estética…

Tantas escolas e universidades frequentei, que me permitiram possuir todos os títulos académicos que um cidadão pode conseguir, e, afinal, o que mais recordo e aproveito ainda são os saberes que vou colhendo no seio deste povo!

In Jornal de Notícias, 26-9-2023

terça-feira, 12 de setembro de 2023

O Douro “imaterial” por descobrir

 

A Região do Douro é, toda ela, um desafio permanente para os olhos e para o coração. Se os olhos descobrem em cada pedaço da paisagem um mosaico sublime de beleza, o coração é tocado pelo mistério e magia das suas gentes, dos seus costumes, das suas crenças, bem retratados nos seus contos e lendas.

O aparato da paisagem – com os seus fenómenos naturais, os vales profundos, as escarpas assombrosas, os nevoeiros, os penedos imensos imitando seres diabólicos, o rumorejar das ribeiras e riachos… – ajudou a criar muitas narrações orais. Por isso, algumas são o resultado das interpretações populares desses mistérios, enquanto outras são a explicação para muitas capelas, grutas, nomes de povoações, de lugares, de montanhas, de fragas, de esculturas antigas ou ruínas de castros.

Quando usamos a expressão “terra-mãe” ao falarmos da nossa terra, do espaço das nossas origens, reconhecemos nela um domínio espiritual sobre nós. Por isso, quando estamos longe, e regressamos à nossa terra, é como se voltássemos ao aconchego do colo materno. É como se voltássemos para reviver todas as histórias que iluminaram a nossa infância. Histórias que brotam da paisagem, como se os penedos fossem os castelos e o rumorejar dos rios a voz das personagens.

Por tudo isto, reconhece-se a urgência nas ações de resgate da memória oral nos espaços físicos e espirituais deste território, onde o desaparecimento acelerado da população idosa compromete a possibilidade de inventariar e estudar os conteúdos marcantes do seu património imaterial. Uma preocupação a que, felizmente, também a Comunidade Intermunicipal do Douro (CIM-Douro) não é alheia, ao inscrever no seu plano estratégico para a presente década (2020-2030) um compromisso com a inventariação do património imaterial do Douro, enquanto “elemento fundamental de promoção e valorização da identidade e espírito duriense”.

In Jornal de Notícias de hoje (12-9-2023)


domingo, 27 de agosto de 2023

A antecâmara de uma parcela do paraíso

 

(foto de João Carrola)

É assim, ao anoitecer, a entrada no campus da UTAD. A magia do silêncio reconforta o olhar e afaga o desejo indomável de entrar e descobrir. “Entre quem é”, diria Torga.

Amanhã mesmo, e até 4ª feira, cerca de milhar e meio de novos alunos, que ganharam o direito e o privilégio de entrar nesta Universidade, irão descobrir esta parcela de paraíso, que em tempos apelidei de “oásis de biodiversidade”. Um oásis de vida e de aprendizagem, singular em Portugal e no mundo, que mantém um ecossistema de organismos vivos, onde, entre as nuances de verde, há espécies vegetais que contam histórias dos quatro cantos do mundo, enquanto servem de poleiros naturais a toda a sorte de passarada cantante. 

A harmonia deste ecossistema tanto nos sugere o “hino à natureza” de Torga como “as quatro estações” de Vivaldi. E da mesma forma que os instrumentos musicais se harmonizam para formarem uma melodia sublime, também aqui os organismos vivos se conjugam no equilíbrio do ecossistema para que a perfeição do eco-campus da UTAD seja igualmente sublime.

A oportunidade de estudar nesta Universidade é, pois, um desafio tão estimulante como enriquecedor. Os meus parabéns aos novos caloiros. 

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quinta-feira, 17 de agosto de 2023

UTAD: 50 anos de história

 

Completa-se este mês meio século. Meio século de um percurso combativo, desde os alvores dos anos 70 do século passado, na defesa dos interesses de uma região então votada ao mais completo marasmo.

Impõe-se, por isso, o dever de recordar o papel dos grandes pioneiros da instituição e a sua luta efetiva pela descentralização (Veiga Simão, Tomás Espírito Santo, Cardoso Simões, António Réfega, Valente de Oliveira, Fernando Real e Joaquim Lima Pereira, entre muitos outros), assim como a intervenção enérgica dos órgãos de imprensa de então e “forças vivas” locais, que, mesmo no período do Estado Novo, não se coibiram de afrontar o regime, erguendo uma voz coletiva na reivindicação de direitos até então nunca atendidos.

Isto num tempo em que na Assembleia Nacional havia quem objetasse que, dar “a qualquer cidadão o direito de ser doutor, mais não é do que entender que qualquer burro tem o direito de ser cavalo”.

Para os vindouros fica a convicção de que o que se conseguiu foi sempre ao poder de muita luta. Nada caiu do céu em Trás-os-Montes. A história da UTAD demonstra-o bem. Em 1970, Veiga Simão lançou o “embrião”. Depois, até ao “Politécnico” (IPVR), criado em agosto de 1973, foi uma luta de bastidores e de “lobbies” acionados na capital por Tomás Espírito Santo. Porém, sem cursos aprovados nem instalações, houve que voltar ao combate para o pôr a funcionar, o que só aconteceu em dezembro de 1975, com todas as decisões “arrancadas a ferros”. Em 1979, ao poder de greves e manifestações, Lisboa lá se rendeu, elevando o “Politécnico” a Instituto Universitário (IUTAD), então a única forma de atribuir o grau de licenciatura aos seus alunos.

Mas a região queria mais. Sobretudo mais cursos. Por isso, novos combates houve que travar em Lisboa, que continuava a olhar de soslaio para a região, assim nascendo, finalmente, em março de 1986, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.

in Jornal de Notícias 27-8-2023


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Os pioneiros da UTAD

 


Lembrá-los hoje, meio século depois, é um dever cívico. O dever de quem sabe honrar a memória.

Veiga Simão, quando decidiu lançar o ensino superior em cidades como Vila Real, ouviu na Assembleia Nacional (hoje Assembleia da República) um qualquer animal, travestido de deputado da Nação, declarar: “Dar a qualquer cidadão o direito de ser doutor, mais não é do que entender que qualquer burro tem o direito de ser cavalo”.

Mas não se intimidou o jovem Ministro. E o Estado Novo tremeu. Nasceu assim (a 11 de março de 1973) o Instituto Politécnico de Vila Real, que logo evoluiu para Instituto Universitário e depois para Universidade. Aqui recordo os homens do leme que se seguiram (os já falecidos): o Prof. António Réfega, o Prof. Joaquim Lima Pereira, o Prof. Fernando Real (que me “desviou” do jornalismo para a UTAD e depois, enquanto Ministro do Ambiente, ainda me veio buscar para Assessor de Imprensa) e por fim o Prof. Torres-Pereira.

 E para os vindouros, fique a lembrança de que nada caiu do céu em Trás-os-Montes. Todos os avanços foram arrancados a ferros à custa de muitas batalhas. O Marão erguia-se como um obstáculo, mas havia outros ainda mais difíceis de transpor.

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segunda-feira, 24 de julho de 2023

Prega, frade, que pregas debalde!

 


Do interior rural desprotegido e negligenciado pelos governos centralistas da capital, que, ano após ano, foram encerrando escolas, maternidades e serviços de saúde, extinguiram, ou deslocaram para as grandes cidades, repartições, serviços públicos de proximidade, postos e delegações de empresas públicas… tudo, ou quase tudo, já se disse. E o mesmo sobre o falhanço absoluto da Unidade de Missão para a Valorização do Interior, que nada de concreto conseguiu na implementação das anunciadas medidas para travar o despovoamento do interior. Os próprios fundos de coesão territorial, da UE, destinados a travar as assimetrias regionais, apenas conseguiram acentuar o fosso entre o interior e o litoral.

Nesse meio tempo, um esperançoso “Movimento pelo Interior”, fundado com grande consenso nacional, apresentou, em 2018, 24 medidas para, no prazo de três legislaturas, garantir uma clara reversão da situação dos territórios do interior. Grande consenso político, recorde-se, gerou este movimento, inclusive com o forte empenho dos autarcas socialistas, como era o caso presidente de Vila Real, Rui Santos, ao lembrar que uma das medidas propostas era para que, “qualquer novo organismo a ser criado pelo Estado central, a sua sede fosse num território do interior”.

Como diria o outro: “Prega, frade, que pregas debalde!”. Debalde mesmo. O Ministério da Cultura anunciou que, a partir de 1 de janeiro de 2024, dois novos organismos vão ser criados: a empresa pública Museus e Monumentos de Portugal, que ficará em Lisboa, e o Instituto Público Património Cultural, com competências de salvaguarda e conservação do património cultural imóvel e imaterial, com sede no Porto.

Decididamente, o Estado não sabe como lidar com o Interior. Sempre com um hálito demagógico na boca quando fala da coesão do território, falha em absoluto nas suas políticas.


in JN, 24-7-2023


sexta-feira, 23 de junho de 2023

O decano dos jornalistas

 


Completou este ano 70 anos de jornalismo. De jornalismo ativo, ininterrupto, com carteira profissional atualizada até 2024. Julgo não haver em Portugal um jornalista com tal dinâmica, longevidade e jovialidade. Daí designá-lo decano dos jornalistas portugueses.

João Barroso da Fonte, começou como pastor de vezeira e de vacas numa pequena aldeia do Barroso, dividindo o dia entre o trabalho infantil e a escola primária. Confessou numa entrevista recente que, com cinco anos de idade, já ia com os bovinos para os lameiros. E assim cresceu com a energia renovada dos renovos que despontam nos campos. Foi seminarista, combateu em África, foi jornalista do JN, fundou e/ou dirigiu jornais e revistas (“Comércio de Guimarães”, “A Voz de Guimarães”. “Gil Vicente”, “Poetas & Trovadores”, “9 Séculos”), foi colunista em 224 periódicos (inclusive no semanário “A Região”, sob a minha direção nos finais dos anos 80), escreveu dezenas de livros (poesia, ficção, ensaio), dirigiu o Paço dos Duques de Bragança e a delegação da Comunicação Social do Norte, foi vereador da cultura em Guimarães.

Enquanto combatia no Ultramar, escrevia para a revista “Crónica Feminina”, a troco de 80 escudos por artigo, recebidos em cheque pela esposa, em Guimarães, para ajuda no sustento dos filhos.

Fundou o Gabinete de Imprensa de Guimarães em 1976, responsável pelos primeiros cursos de formação de jornalistas em Portugal financiados pelo FAOJ, e, de seguida, lançou o Instituto Português da Imprensa Regional (IPIR), que permitiu aos profissionais e colaboradores da imprensa regional usufruir de um cartão de acreditação, legitimado pelo Governo, que conferia aos titulares os mesmos direitos da Carteira Profissional dos jornalistas.

 E, hoje continua a fazer furor com os artigos que escreve na imprensa regional. A energia é a mesma dos tempos áureos. Com ela planta e difunde cultura, saber, humanidade.

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 23-6-2023


quarta-feira, 31 de maio de 2023

A heroica resistência dos professores

 


O que vemos, ouvimos e lemos traz-nos o retrato de um país enleado no desgoverno de líderes e decisores que, em seus atos desorientados, vêm ensombrar os horizontes de esperança que um novo ciclo de oportunidades vinha alimentando. Portugal, assim, mais parece um país-caravela, que navega à deriva em águas turbulentas, na busca, desesperada, de uma âncora que quanto mais se deseja mais ela tarda.

Pior que tudo ainda é assistirmos à destruição dos seus alicerces: a educação. É vergonhoso o trato a que está sujeita uma das classes profissionais mais imprescindíveis do país. A desautorização, o desrespeito, a humilhação, nas escolas e na sociedade, o congelamento de carreiras, as estranhas regras de mobilidade, a terrível burocracia a recair sobre os professores, as turmas e horários sobrecarregados, a violência impune nas escolas… vêm tornando o exercício da profissão de professor numa verdadeira tortura, não se vislumbrando, mau grado a profusão de greves e manifestações, sinais animosos de compreensão e justiça por parte de quem tem o poder de governar e decidir.

Ainda assim, os professores conseguem fazer milagres, ser inventivos, contrariando as desventuras de um sistema que lhes retira direitos de ano para ano, de um sistema inibidor do entusiasmo e da criatividade. E continuam a obter resultados, a plantar sorrisos entre as crianças, a abrir rumos de esperança no seio dos jovens.

Queiramos que, neste malbaratar de oportunidades e de bom senso, haja ainda uma réstia de decoro, e que a heroica resistência dos professores, com tantos sacrifícios já sofridos, permita, finalmente, recuperar a paz e a esperança de que a educação em Portugal tanto carece. E convençamo-nos de que, se ainda há esperança para Portugal, ela está na educação.

in JORNAL DE NOTÍCIAS, 31-5-2023


quinta-feira, 13 de abril de 2023

O meu adeus à Profª Conceição Martins

 


Partiu hoje (12 de abril), após longo tempo de doença. Notável professora e investigadora da UTAD, influenciou centenas de alunos que a têm como inapagável referência.

Trás-os-Montes deve-lhe muito. Ao longo de anos, desenvolveu rigorosos estudos científicos sobre as características singulares do fumeiro transmontano, especialmente de Vinhais e do Barroso, conduzindo à sua certificação, o que permitiu relançar a economia das populações, implementando uma indústria artesanal que estava moribunda, e assegurar a subsistência de muitas famílias rurais. O fumeiro transmontano é hoje uma referência em Portugal e no mundo!

Era filha do saudoso empresário António João Martins (o famoso “João da Salsicharia"), um dos maiores beneméritos de Vila Real, de quem fui um grande amigo. Poucos o saberão, mas a nossa memória ainda está ativa para o testemunhar: Este homem tinha comprado, há meio século atrás, a Quinta de Prados, onde hoje está o Campus da UTAD. Havia já pago o respetivo sinal ao antigo proprietário que vivia em Guimarães. Era um negócio chorudo, todos o sabiam. Porém, num famoso jantar rotário, com um grupo de amigos (vila-realenses como hoje já não há…), convenceram-no a desistir do negócio. E desistiu, num gesto altruísta que temos o dever de reconhecer, permitindo que fosse o "Politécnico" a adquirir a quinta.  E mais: contaram-nos que nem o sinal que tinha pago quis recuperar. Tratando-se de instalar uma futura universidade em Vila Real, todos tinham de estar de mãos dadas. Era assim nesses tempos.

Memórias que não podemos apagar, quando vemos partir uma senhora que tanto respeito e admiração nos merece. As minhas condolências à família.

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quarta-feira, 15 de março de 2023

Os “Diários” do Padre Fontes

 

Ao completar os 83 anos, quis celebrá-los com o lançamento dos seus “Diários”, um livro, publicado pela Âncora Editora, que ajuda a entender a personalidade singular de um sacerdote que, desde o refúgio das montanhas do Barroso, se tornou um dos mais conhecidos e controversos clérigos do país. “Parece bom rapaz, mas também pode ser o diabo”, assim o apresentou o Reitor ao lançá-lo numa das paróquias onde iniciou o sacerdócio.

António Lourenço Fontes dá agora a conhecer alguns dos seus traços mais pessoais, mostrando como superou, desde os tempos submissos do Seminário, as lutas íntimas, as contradições, as tentações, e, sobretudo, como impôs a si próprio os desafios do Evangelho. “Uma vida destas é de desesperar e de suicídio”, escrevia, num laivo de desalento, o jovem seminarista no seu “Diário”, para, no dia seguinte, autorreprovar-se: “Nestes dias és pior que um burro. Ele apenas vive para o vício que é o único bem que conhece. Tu ao menos sabes que há outro Bem maior”.

A sua natureza, como reconhece numa das páginas, “é igual à dos maiores santos ou dos maiores diabos e diabretes”. E não hesita em assumir o papel de “bruxo-mor” nos rituais diabólicos do Barroso. Por isso, o Padre Fontes não é, nem nunca foi, um padre como outro qualquer. Rebelde, satírico, respingão, estudioso da cultura do seu povo, cultivador de ciumeiras corporativas, sempre a resistir aos caprichos convencionais das autoridades religiosas, é, acima de tudo, um homem que luta em prol de um Céu na própria Terra. Perto das imperfeições humanas e longe das obsessões clericais.

“Não vás para padre que te capam”, avisavam-no os vizinhos quando ingressou no Seminário. E até o Bispo mais tarde o preveniu: “Vou fazer-te padre, mas tens de mudar a casaca”. Mudou? Não mudou? O melhor é ler os seus “Diários”.

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 14-3-2023


quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Coisas do Diabo...

 

Numa das minhas frequentes andanças pelas escolas, ouvi um dia uma professora/contadora de histórias transmitir aos alunos uma interessante fábula, para mim então desconhecida. Contava ela sobre um cavalo que, estando preso a uma árvore e a tentar soltar-se a todo o custo para conseguir abeirar-se de um pasto num lameiro próximo, o Diabo passou por ali e, com pena do animal, soltou-o. O cavalo comeu o que pôde, e logo a mulher do lavrador, dono do lameiro, ao ver o prejuízo, pegou na caçadeira do marido e matou o animal. O dono do cavalo, enraivecido com tal crueldade, fez pior: pegou também na sua caçadeira e matou a mulher. E daí a nada o marido desta, em represália, matou-o a ele. Depois, os filhos do dono do cavalo, mais revoltados ainda, pegaram o fogo à casa do lavrador, deixando-o sem nada. Por fim, o lavrador, empunhando de novo a caçadeira, matou os filhos do dono do cavalo. E então o povo da aldeia, que se juntou a chorar e a comentar tamanha tragédia, só dizia:

– Coisas do Diabo…

Ao que o Diabo, que estava ao pé e a escutar tais comentários, reagiu:

– Mas que fiz eu? Apenas soltei o cavalo!

Queria a narradora justificar, no seu engenho alegórico, como as coisas simples, insignificantes até, por vezes males-entendidos, pequenas brigas de que raramente se preveem as consequências, uma foto íntima ingenuamente partilhada numa rede social, podem ter efeitos devastadores. Mas poderíamos ainda ampliar a alegoria, na sua exegese, a uma multiplicidade de inquietações, como, por exemplo, o colocar uma simples cruz no retângulo de um voto, não imaginando como daí pode resultar uma reviravolta na vida de cada um, ou na vida de um país. Ou, até, perceber como num diálogo mal principiado entre nações pode estar a antemanhã de uma guerra.

É por estas e por outras que o povo metaforiza, na sua apurada sabedoria: “O Diabo sempre espreita nas frinchas”.

in JN, 14-2-2023