sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

 

Tenho em grande apreço os velhos contadores de histórias. Ainda que a sociedade moderna os ignore, não me canso de ir ao seu encontro ao Portugal profundo, às aldeias recônditas. Com eles resgatam-se memórias que são verdadeiros tesouros de cultura e saber. E ouvindo-os, sopram-se acendalhas que fazem um pouco mais de luz no entardecer das suas vidas.

            Agostinho Barreira, um velho pastor da Serra do Alvão, hoje com os seus 88 anos, é um desses contadores de histórias. Conta-as como as ouviu aos que já partiram, garantindo que muitas lhe chegaram à passagem de peregrinos, vagabundos, almocreves e galegos. Algumas são tão velhas como o mundo, do tempo em que os animais falavam.

            Num dos encontros em plena serra, enquanto admoestava com um assobio a cabrada e o rafeiro, confiou-me uma dessas narrações que, outrora, corriam entre as gentes que iam e vinham nas rogas do Douro.

            «Nessas grandes quintas, – contou-me – havia antigamente os criados, que faziam o trabalho do dia-a-dia. E havia os feitores que nada faziam e que só lá estavam para dar ordens. Acontece que alguns eram ruins e faziam a vida negra aos criados. Por isso, numa ocasião andava no seu trabalho um criado muito preocupado, a praguejar e a lamentar a sua sorte, pois estava para vir um novo feitor, e ele com medo que ainda fosse pior do que o anterior.

– Estamos mal. Vamos ter um novo feitor, manda-nos fazer isto, depois aquilo, depois mais isto e mais aquilo, vai ser o bonito...!

Ao pé dele, a ouvi-lo, estava o burro, e, de tanto o ouvir, já estava, também ele, preocupado. Até que lhe procurou:

– Olha lá, será que o novo feitor me vai pôr duas albardas?

– Não, duas albardas não!

– Então quero lá saber! Ele que venha, que a mim tanto se me dá!»

Mais do que uma oportuna visão pragmática da política (ou não estivéssemos à vista de nova luta eleitoral), esta metáfora mostra bem como o povo também sabe rir de si próprio. A forma mais saudável de rir.

In JORNAL DE NOTÍCIAS, 26-1-2024


sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

Quem vai levar a carta a Garcia?

 

Desde que ingressei no mundo do jornalismo, em 1976, vi desaparecerem títulos de jornais que eram verdadeiros monumentos nacionais: a “República” em 1976, o “Século” em 1977, o “Jornal do Comércio” em 1985, o “Diário de Lisboa” em 1990, “O Diário” também em 1990, o “Diário Popular” em 1991, “O Primeiro de Janeiro” em 1991, “A Capital” em 2005 e, finalmente, também em 2005, “O Comércio do Porto” que atingia então 151 anos de vida, um jornal a que entreguei os melhores anos da minha juventude: primeiro estagiário, depois repórter, depois redator.

Saí em 1999, mas ainda hoje o retenho como a melhor escola de vida que tive. O que aprendi nas universidades que frequentei eram medronhos comparados com as framboesas que colhi naquela escola. Aprendi a enfrentar e a denunciar políticos corruptos, mentirosos e hipócritas, assim como bandidos, violadores, ladrões de estrada. Por isso, tantas vezes assentei praça nos tribunais como repórter e como réu. Depois, o jornal fechou e pronto. A sua morte foi acompanhada da mais impávida indiferença por parte dos meios culturais, políticos e económicos. Foi então que comecei a perceber que este Portugal já não era o mesmo. Um país que vê jogar fora um dos mais valiosos monumentos à cultura e à memória coletiva, e fica a assobiar para o lado, é um país a seguir um rumo estranho.

E agora temos as ameaças que pairam sobre o “nosso” JN, um dos últimos pilares do jornalismo de qualidade que se faz em Portugal. Perante os tempos tumultuosos que se conhecem em torno da sobrevivência do jornal, é de recear, no mínimo, a perda de uma identidade consolidada nos três séculos que percorreu, desde 1888.

Neste despontar de um Novo Ano, aqui manifesto os meus votos de que uma nova aurora permita que a luta dos jornalistas do JN pelos seus direitos não esmoreça. De contrário, nos trilhos de um jornalismo de qualidade, quem ficará para levar a carta a Garcia?