terça-feira, 26 de setembro de 2023

A paz não se dá…

 

Ouvi, há anos, a um velho transmontano, de Espinhoso, Vinhais, desses que designo de “narradores da memória”, esta singela parábola: Quando Nosso Senhor andava pelo mundo, juntaram-se uns poucos de fiéis e foram pedir-lhe:

– Divino Mestre, precisamos de ser felizes. E como somos bons cristãos, apenas vos pedimos quatro coisas: pão, carne, vinho e paz.

Nosso Senhor respondeu:

– Só posso dar-vos pão, carne e vinho. A paz tereis de ser vós a consegui-la.

É ouvindo estas singulares lições, que os flagelos de um tempo atulhado de hostilidades e incertezas fazem permanecer atuais, que, há muito, me bato pela urgência em reconhecer como válida esta outra “universidade”. Infelizmente estas “escolas” estão a fechar depressa demais. E, pelo caminho, vão ficando por descobrir as valiosas teorias filosóficas de um povo sábio. Um povo de olhos no Céu para achar respostas na Terra.

Para ouvi-lo, há que ir ao terreno, indagar sobre a pragmática dos seus saberes. Saberes convertidos em histórias que nos lisonjeiam a alma. Saberes que não aprenderam nos livros, mas em aulas práticas nas convenções e rotinas das tornajeiras e vezeiras, partilhas de água, na energia cinética dos moinhos, nos fiandeiros, na urdideira dos teares, nas celebrações rituais, nas rotinas ecotelúricas do minguante ao crescente, no belo horrível das tempestades, na espiritualidade das crenças, na estética do nascer e pôr-do-sol, na sinfonia dos campos e dos bosques, ou no silêncio diáfano das montanhas. Aí se recebem valiosas lições de economia aplicada, de epistemologia das ciências experimentais, lógica e retórica, semiótica das linguagens, metafísica, filosofia da estética…

Tantas escolas e universidades frequentei, que me permitiram possuir todos os títulos académicos que um cidadão pode conseguir, e, afinal, o que mais recordo e aproveito ainda são os saberes que vou colhendo no seio deste povo!

In Jornal de Notícias, 26-9-2023

terça-feira, 12 de setembro de 2023

O Douro “imaterial” por descobrir

 

A Região do Douro é, toda ela, um desafio permanente para os olhos e para o coração. Se os olhos descobrem em cada pedaço da paisagem um mosaico sublime de beleza, o coração é tocado pelo mistério e magia das suas gentes, dos seus costumes, das suas crenças, bem retratados nos seus contos e lendas.

O aparato da paisagem – com os seus fenómenos naturais, os vales profundos, as escarpas assombrosas, os nevoeiros, os penedos imensos imitando seres diabólicos, o rumorejar das ribeiras e riachos… – ajudou a criar muitas narrações orais. Por isso, algumas são o resultado das interpretações populares desses mistérios, enquanto outras são a explicação para muitas capelas, grutas, nomes de povoações, de lugares, de montanhas, de fragas, de esculturas antigas ou ruínas de castros.

Quando usamos a expressão “terra-mãe” ao falarmos da nossa terra, do espaço das nossas origens, reconhecemos nela um domínio espiritual sobre nós. Por isso, quando estamos longe, e regressamos à nossa terra, é como se voltássemos ao aconchego do colo materno. É como se voltássemos para reviver todas as histórias que iluminaram a nossa infância. Histórias que brotam da paisagem, como se os penedos fossem os castelos e o rumorejar dos rios a voz das personagens.

Por tudo isto, reconhece-se a urgência nas ações de resgate da memória oral nos espaços físicos e espirituais deste território, onde o desaparecimento acelerado da população idosa compromete a possibilidade de inventariar e estudar os conteúdos marcantes do seu património imaterial. Uma preocupação a que, felizmente, também a Comunidade Intermunicipal do Douro (CIM-Douro) não é alheia, ao inscrever no seu plano estratégico para a presente década (2020-2030) um compromisso com a inventariação do património imaterial do Douro, enquanto “elemento fundamental de promoção e valorização da identidade e espírito duriense”.

In Jornal de Notícias de hoje (12-9-2023)