É
conhecido em Trás-os-Montes um velho conto popular que alegoriza um pacto estratégico
entre a “miséria” e a “morte”. Nele se conta que a “Tia Miséria”, uma velhinha
desejosa de se perpetuar, conseguiu fazer um acordo com a “morte”, de maneira a
decidiram em conjunto quem esta deveria, ou não, levar com ela.
Nada
mais do que uma alegoria, bem se vê. E como todas as alegorias, também esta vem
ilustrar a triste realidade a que a cultura vem sendo votada pelo governo no
interior do país. Mais uma vez, como se tornou público nos últimos dias, a
distribuição dos apoios estatais à criação teatral excluiu as companhias de
teatro no interior norte, beneficiando as da zona de Lisboa. A miséria a que estão sistematicamente
condenados pelo Ministério da Cultura representa, a prazo, uma ameaça de morte
sobre as companhias e projetos teatrais do interior. O Ministério, ou quem no
seu seio toma as decisões que bem entende, faz assim o papel dessa tal “Tia
Miséria”, escolhendo quem tem ou não o direito de sobreviver neste inquietante
universo de náufragos que acorre ao seu auxílio.
De
pouco ou nada valem as experiências de longos anos de luta no interior do país,
num esforço de verdadeiros heróis da descentralização cultural, fazendo chegar
o teatro às escolas, jardins de infância, cineteatros, lares de idosos,
terreiros de aldeias ou igrejas, e desafiar as populações rurais a interagir
com obras e autores emblemáticos (Raul Brandão, Tcheckov, Lorca, Molière, Torga, Garrett,
Gil Vicente, Brecht, José Luís Peixoto, Saramago, Shakespeare…).
Algo vai mal neste teatro de sombras, comandado em
Lisboa, onde o destino das companhias de teatro do interior está à mercê de um
jogo performativo cruel, o da indiferença de quem governa a cultura deste
país.
In JORNAL DE NOTÍCIAS, 4-12-2020