Celebrou-se por estes dias, na justa
medida da dignidade do evento, os 15 anos da classificação pela UNESCO do Alto
Douro Vinhateiro como Património Mundial. Como é próprio das celebrações, foi
uma oportunidade para refletir sobre os desafios que o selo de Património
Mundial impôs no Douro e sobre novas dinâmicas que assegurem um crescimento
sustentado salvaguardando a autenticidade do território. Uma oportunidade
também para louvar o trabalho ciclópico de um povo que, ao longo de séculos,
conseguiu moldar a própria natureza, dotando-a de uma beleza singular enquanto
paisagem “evolutiva viva”.
Vencida esta batalha, que colocou o
Douro nas rotas mundiais, atraindo riqueza, expansão vinícola e turismo (200
mil visitantes anualmente sobem e descem o rio), há “outro” Douro que continua
de fora. Na mesma medida em que uma paisagem “evolutiva viva” cresce, um Douro
cultural de gente, de memória, definha. Entidades e organismos que vemos
trombetear nas celebrações, alguns com responsabilidades na área da cultura, ignoram
que o Alto Douro Vinhateiro não é apenas um espaço físico. É também um espaço
semiotizado com a memória coletiva como suporte; um espaço de Património
Imaterial que provém das raízes
do povo e que está ameaçado de extinção nos 13 concelhos que
compõem o território. Todo ele é caracterizado por um universo mítico-lendário
associado às singularidades assombrosas da paisagem, mas também aos lugares de
memória como são os vestígios de povos antigos, com os seus labores, os seus
cultos pagãos, a sua religiosidade cristã (lagares cavados em rochas, gravuras
rupestres, megálitos, grutas, castros, torres, capelas…), um universo de que a
toponímia rural e os testemunhos da população idosa são, muitas vezes, a única
fonte de informação disponível.
Este espólio faz parte de uma cultura
imaterial, intangível, encerrada em arcas de memória frágeis. Os narradores da
memória, “tesouros vivos” deste património, cuja proteção a UNESCO reclama dos
estados, estão absolutamente desprotegidos no Douro Património Mundial. O abandono das aldeias e a retirada dos idosos para
lares de terceira idade, sem, no mínimo, se acautelar um plano de salvaguarda
dos seus testemunhos, através de um inventário sistematizado de Património
Imaterial, é o maior flagelo civilizacional do nosso tempo. Hoje trombeteia-se
a paisagem “evolutiva viva” para amanhã se prantear a paisagem “evolutiva
morta”.
Alexandre Parafita
in JORNAL DE NOTÍCIAS, 24-12-2016
in JORNAL DE NOTÍCIAS, 24-12-2016