É deveras
inquietante para a humanidade o apelo que a diretora-geral da UNESCO, Irina
Bokova, teve de lançar aos jovens, desde a Universidade de Bagdad, para que
usem todos os meios ao seu alcance, especialmente as redes sociais, no combate
à campanha de "limpeza cultural" a que está sendo sujeita a República
do Iémen, com as ações orquestradas de destruição do seu património cultural
pelos grupos extremistas do Estado Islâmico. O património do Iémen é único.
Grande parte está classificada como Património Mundial. Nela se mostram séculos
de reflexão sobre o Islão. A destruição do museu da cidade setentrional de
Mossul e vários sítios arqueológicos, como os de Nimrud e Hatra, bem como a
difusão pelos jiadistas de um vídeo que mostra a destruição de esculturas
pré-islâmicas de valor inestimável, estão ainda vivas na memória recente.
Um apelo
desta natureza aos jovens, implicando-os num combate ativo pela defesa do
património, acentua também a noção de que o património cultural não é um bem
exclusivo de uma geração. A nenhuma geração cabe o direito de fazer dele o que
bem entende, nem tão pouco de sujeitá-lo aos seus caprichos civilizacionais,
pois trata-se de um legado da cosmogonia de um povo, ou seja, a herança da sua
memória coletiva, havendo que acautelar o direito que a ela também têm as
gerações futuras. E tudo porque a memória tem também um papel normativo,
especialmente quando, representada no património comum (material ou imaterial),
lhe cabe inserir os indivíduos numa cadeia de filiação identitária.
Daí que a
campanha de "limpeza cultural" a que se assiste no Iémen deva
alertar-nos para o maquiavelismo de uma estratégia (tratando-se de uma
estratégia e não de um sórdido vandalismo apenas) apostada numa "queima de
arquivo" da memória de um povo. Aliás, nem sequer é original esta
estratégia e conhecem-se bem os efeitos de outras que a história dificilmente
apaga. Bem sabemos como a cristandade se empenhou em destruir, na Península
Ibérica, os documentos árabes do séc. VIII, como forma de eliminar a verdade da
memória muçulmana, ou impedir, posteriormente, a sua reconstituição. De facto,
para melhor dominar um povo, escravizá-lo mesmo, há que "sugar-lhe" a
memória, e, desse modo, eliminar-lhe a identidade. Chama-se a isso
desmemoriação.
(AP)
in Jornal de Notícias, 10-4-2015